Moema

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Moema - Rodolfo Bernardelli

sábado, 17 de julho de 2010

Arte pela arte

Arte in-útil, arte livre?


Paulo Leminski

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A curiosa idéia de que a arte não está a serviço de nada a não ser de si mesma é relativamente recente. Data do romantismo europeu do século XIX, apogeu da 1ª Revolução Industrial e da hegemonia burguesa, momento em que o artista se toma um desempregado crônico.

Arte e artesanato. A indústria veio para substituí-lo.

Sem função social mas ainda cheia de sua própria importância, a arte entre horrorizada e fascinada, volta?se contra o mundo utilitário que a cerca, negando-o, criticando-o, como um não-objeto feito de antimatéria.

O mundo burguês é anti-artístico. A arte não precisa mais dele. Já pode nascer a "arte pela arte".



Delícia e lição

Uma arte, uma literatura in-útil: nenhuma idéia poderia ser mais estranha à Idade Média católica, herdeira das concepções greco-latinas sobre o duplo papel da arte: "delectare", "agradar", e "docere", "instruir".

Para um europeu, letrado da Idade Média (quase sempre um clérigo), parecia a coisa mais lógica do mundo que a atividade artística e literária estivesse, como as demais atividades, subordinada a um fim educativo, edificante, a serviço da salvação da alma dos fiéis.

A obra literária tem deveres morais. Não há lugar para uma obra blasfema, sacrílega, iconoclasta, dissolvente, corruptora.

A obra de arte é a expressão de uma norma. Não um gesto criminoso.

Como os homens que a fazem, deve lutar contra o pecado.

A desmesurada liberdade da literatura ocidental moderna pareceria aos medievais o triunfo de Satanás na terra. O pecado da literatura moderna, aliás, é o mesmo de Lúcifer, a soberba, o orgulho de se declarar autônoma, além do bem e do mal.

O Renascimento italiano, cético, crítico, mundano, faz nascer uma nova concepção de arte e literatura, não mais subordinada a deveres morais ou pedagógicos. Uma arte voltada apenas para o "delectare": nasce o conceito de "Beleza", o específico artístico, independente de metas didáticas ou balizas éticas.

A reação católica da Contra-Reforma, em luta contra o protestantismo, restaurou a antiga doutrina da arte a serviço de objetivos ideológicos ou doutrinários. A "beleza" só tem razão de existir porque deve fazer a Verdade se gravar mais fundo no coração dos homens. E essa Verdade vem de fora: préexiste à obra de arte. A literatura volta a ser apenas o veículo de uma visão dada da vida e do mundo.

Não que o protestantismo fosse mais liberal em matéria de arte e literatura. Ao contrário. Lutero e Calvino eram duas mentes medievais típicas. Certas correntes protestantes chegaram mesmo a desvalorizar por completo qualquer atividade artística como sendo coisa de Satanás.

A visão utilitária da arte e da literatura prevalecerá até o século XVIII, incluindo os Enciclopedistas. A vasta obra literária de Voltaire está a serviço das "Luzes", do trabalho de esclarecer as mentes, ridicularizar o preconceito, desmistificar a superstição. Voltaire não é um poeta, tal como entendemos a palavra hoje, uma consciência problemática expressando em palavras seus conflitos. É um educador, um pedagogo, que usa os recursos da literatura para ilustrar certos princípios "morais".

Com a Revolução Francesa e o fim do Antigo Regime, dissolve-se o difícil equilíbrio entre o autor e seu público, entre o autor e seus mecenas ou protetores.

De agora em diante, entregue aos acasos do mercado, o escritor está no mato sem cachorro.



A via francesa

A doutrina da "arte pela arte" foi formulada, pela primeira vez, com todas as letras, na França do século XIX, pelos poetas parnasianos e simbolistas (Gautier, Leconte de Lisle, Baudelaire, Mallarmé). Era também o credo que inspirava o desesperado artesanato estilístico de Flaubert.

Sua formulação foi sentida pelos artistas como uma verdadeira inovação, a libertação da arte de quaisquer compromissos com o não-artístico, a moral, a política, a exaltação patriótica, a tradição nacional, o Bem, a Verdade.

Na literatura romântica, ainda havia uma tensão moral interna que, na França, teve sua grande expressão na caudalosa produção poética de Victor Hugo, hoje pouco prezada (mal conseguimos compreender o verdadeiro endeusamento de que Victor Hugo foi objeto em vida).

Significativamente, a evolução da poesia moderna, em fins do século XIX e inícios do XX, deriva diretamente desses cultores da "arte pela arte": a poesia moderna não existiria sem Baudelaire ou Mallarmé.

Isso se deve principalmente ao fato de que esses poetas, libertados dos lastros morais ou patrióticos, puderam fazer a poesia avançar tecnicamente, em termos de linguagem, até os extremos limites, de que o "Lance de Dados" de Mallarmé é o paradigma último.

Descendendo deles, a poesia mais significativa do século XX nasce da "arte pela arte". Da arte como inutensílio. Não como veículo de princípios "superiores" ou "maiores".

Por essa razão, boa parte da melhor poesia deste século é poesia sobre poesia, poesia crítica, poesia tendo o próprio poetar como objeto de inspiração. Metalinguagem, como se diz no jargão técnico. Mesmo quando tem uma "motivação moral" por trás (o que é inevitável, já que o homem é um ser político, logo moral).

A doutrina da arte pela arte é uma decorrência natural da sobrevivência da arte numa sociedade regida pelo mercado.

No mundo burguês, a obra de arte só pode ser duas coisas: ornamento e mercadoria. Um afresco renascentista na parede de uma Igreja é um complexo composto ideológico, pulsando de tensões morais e intenções de envolvimento coletivo. Um quadro de Manabu Mabe na sala de um banqueiro é apenas um complemento do tapete e do padrão dos sofás. A burguesia saudou a liberdade formal da arte moderna, comprando-a. Transformando-a em mero artesanato: Qualquer artista bem informado de hoje sabe que a arte já acabou. O que continua existindo é artesanato (ou industrianato).

Certas artes, pintura, escultura, se prestaram melhor a essa transformação em mercadoria eticamente neutra, buscadora apenas de qualidades plásticas e cromáticas, técnicas e sintáticas.

Ornamento e mercadoria, a linguagem da pintura moderna perdeu todo o impacto subversor das vanguardas do início do século (expressionismo, fauvismo, futurismo, cubismo, surrealismo, abstracionismo geométrico, tachismo). Ao ouvir falarem arte moderna, o burguês puxa o talão de cheques.

Mas uma arte resistiu com particular vigor a essa comercialização.

E essa foi a literatura, a arte que tem a palavra como matéria-prima. Em especial, a poesia, lugar onde a palavra atinge vigência plena, máxima, substantiva.

Nem era de admirar. Signicamente, as artes são feitas com ícones (cores, sons, melodias, ritmos, movimentos corporais). A literatura, a poesia, é a única arte feita com símbolos (palavras que o poeta, alquimista, tenta transformar em ícones).

Ora, um ícone, uma cor pode ser a-moral e "a-política".

Uma palavra não pode.

Pra começo de conversa, uma cor é um valor universal, independente de raça, época ou lugar. Uma palavra, toda palavra pertence a um idioma particular, historicamente determinado no espaço e no tempo, o mais pesado lastro coletivo que o homem pode carregar. Falar basco na Espanha ou gaélico na Irlanda é um gesto, em si, político (as nações deveriam coincidir com o espaço de uma língua ou dialeto).

Cada palavra tem sua história, sua biografia, sua etimologia.

Seu uso deflagra uma constelação de sub-significados e sentidos que, em cada idioma particular, tem certo desenho próprio e intransferível.

A palavra é, essencialmente, política. Portanto, ética.

Daí, talvez, a dificuldade de transformar a literatura, a poesia, em mercadoria.

Na ficção, o ramo comercialmente mais próspero da literatura, não é a palavra a verdadeira mercadoria. E o enredo, a trama, o entrecho, vale dizer, desenhos, isto é, ícones. Aquelas coisas que Brecht queria, em vão, vender, entrando na fila dos roteiristas de Hollywood...

O puro valor da palavra está na poesia. Por isso, é sempre considerada mercadoria difícil. "Poesia não vende" é um dos mandamentos do Decálogo mínimo de qualquer editor sensato. Pois não vende mesmo. O destino da poesia é ser outra coisa, além ou aquém da mercadoria e do mercado.

Mal obram e mal pensam aqueles que reclamam da renitência das casas editoras em publicar poesia. Deveriam mais é ficar alegres. A poesia, afinal, é a última trincheira onde a arte se defende das tentações de virar ornamento e mercadoria, tentações a que tantas artes sucumbiram prazeirosamente.

E não deixa de intrigar o fato de a doutrina da "arte pela arte" ter sido formulada, exatamente, por poetas. Não por pintores, nem por romancistas.

Transformada em mercadoria, a obra de arte é transformada em nada.

Os teóricos da "arte pela arte" apenas recolheram essa maldição. E lhe deram sinal positivo.

Desde então, a arte está em conflito direto com o mundo. A melhor arte do século XX é um gesto contra o mundo que a rodeia. Uma negatividade.



A via russa

"Acontece comumente que os autores de romances, mesmo tratando, aparentemente, de combater os vícios, apresentam-nos com tais cores que por esse mesmo fato fazem com que os jovens se sintam atraídos por vícios dos quais conviria não falar. Qualquer que seja o mérito literário dessas obras, elas só podem ser publicadas se tiverem em vista um fim verdadeiramente moral".

"Mutatis mutandis", a frase poderia ser assinada por qualquer autoridade cultural soviética (ou socialista) de hoje. Basta substituir "moral" por "coletivo", "socialista" ou "revolucionário".

Mas a frase é do conde Razumovski, ministro da Instrução Pública da Rússia, em 1814, justificando a proibição de um romance que satirizava a sociedade aristocrática da época.

Tanto da parte do governo quanto da parte dos escritores, a extraordinária literatura russa do século XIX (Gogol, Tolstói, Dostoiévsky, Turguiênev, Tchékov) é uma literatura, sobretudo, moral. E a consciência social do povo russo, uma literatura de acusação e denúncia, de resistência e responsabilidade coletiva.

Caráter moral: nisso, os poderes e a oposição estavam de acordo. Só os sinais estavam trocados. Ao forçoso e forçado moralismo da censura czarista, os escritores russos reagiram com um moralismo oposto.

O grande momento reflexivo dessa afirmação russa do caráter moral da literatura é "O que é Arte", de Tolstói (de 1898).

Nesse ensaio implacável, o autor de "Guerra e Paz" denuncia a "degenerescência" da arte moderna, em particular, a doutrina da "arte pela arte", à luz de critérios éticos e "humanos". Para Tolstói, toda a arte e a literatura de sua época lhe parecem manifestações patológicas de sensibilidades decadentes e "desumanas". Repugna-lhe seu "ocultismo", sua tendência à criança de seitas e "panelinhas" fechadas. No rigor das suas exigências, expressa cabal repúdio a Balzac, Flaubert, Zola e os Goncourt, enquanto exalta a ficção de Dickens, Victor Hugo e Dumas pai... Sobre os poetas, Baudelaire, Mallarmé, seus juízos são mais severos ainda.

Esse caráter ético da literatura russa vem do século XIX e continua, quase intacto, na literatura soviética: a Revolução apenas herda do czarismo o utilitarismo artístico e literário. Nesse aspecto, a literatura do povo russo apresenta uma rara unidade de sentido.

De Razumovski a Tolstói, chegamos a Plekhânov, o introdutor do marxismo na Rússia: a mesma postura "utilitarista", moral, anti-arte pela arte. Seu "A Arte e a Vida Social", conferências de 1912, repete, em nota marxista e proletarizante, a argumentação de Tolstói.

Nessas conferências, cujo brilho não pode ser negado, Plekhânov conduz o julgamento da "arte pela arte", à luz dos seus condicionantes de classe. O que em Tolstói era moral, em Plekhânov é político.

Descontados os detalhes, essa visão da arte e da literatura prosseguiria por toda a era soviética, stalinismo adentro.

Importa muito observar ainda como essa visão russa da arte impregnou a estética e a poética do socialismo em geral. Uma postura ideológica marxista do mundo parece ser indissociável de uma visão utilitária e utilitarista da arte, nas antípodas da "arte pela arte".



Adorno: "Arte pela arte" de esquerda

Felizmente, a visão marxista da arte não parou nos maniqueísmos moralistas de Plekhânov, produzindo com Adorno (Theodor W. Adorno) uma espécie de síntese dialética entre o inutensílio da "arte pela arte" e o compromisso ético e político de viver revolucionariamente uma dada circunstância histórica.

Expoente da chamada Escola de Frankfurt, Adorno já é um contemporâneo de Walter Benjamin e Brecht. Sua reflexão teórica se volta para um capitalismo numa fase muito mais adiantada que a de Plekhânov. Comparado com Plekhânov, Adorno reflete a) num meio intelectualmente muito mais sofisticado e b) numa circunstância não-revolucionária.

Para Adorno, a grandeza da arte está em sua capacidade de resistir ao estatuto de mercadoria, em situar-se no mundo como um "objeto não identificado". Em sua recusa de assumir a forma universal da mercadoria, a arte, a obra de arte é a manifestação, em seus momentos mais puros e radicais, de uma "negatividade". Ela é "a antítese da sociedade". A antítese social da sociedade.

Para Adorno, crítico eleitor agudíssimo das contradições do capitalismo, a arte só tem uma razão de ser enquanto negação do mundo reificado da mercadoria. Vale dizer, enquanto inutensílio.

A tensão ética da obra está nesta recusa em virar mercadoria.

Misteriosamente, os defensores da "arte pela arte" tinham razão.



In ANSEIOS CRIPTICOS, Ed. Criar, Curitiba, PR, 1986, p. 29-34.